“A esquerda não foi capaz de elaborar um discurso próprio sobre a maternidade”

Esquerda.net

“A maternidade foi sempre um tema incómodo para o feminismo”. Em entrevista, Esther Vivas explica as razões pelas quais as feministas dos anos 60 e 70 caíram “num certo discurso anti-materno e anti-reprodutivo como reação à imposição do patriarcado para que as mulheres exerçam a experiência materna”. No seu último livro, afirma a mãe como “sujeito ativo, com capacidade de tomar decisões, que se reconcilia com o próprio corpo, fortalecendo-se na gravidez, parto e amamentação”.

“A maternidade é um território em disputa”. Esther Vivas (Sabadell, 1975) refletiu e trabalhou a fundo sobre a maternidade. Trabalho e reflexão que resultaram em Mamá desobediente (Capitán Swing), um livro que explica em que consiste o ativismo materno, no contexto do feminismo atual, que desafia o patriarcado e o capitalismo. “Graças à luta feminista acabámos com a maternidade enquanto destino. Agora temos que decidir como queremos viver essa experiência”, explica em entrevista.

No livro, diz que é preciso “politizar a maternidade”. A afirmação é no mínimo surpreendente. Por que motivo acha que um aspeto que as pessoas tendem a considerar como sendo parte de uma das áreas de decisão mais privadas da vida deve ser tratado como uma questão política?

A maternidade é sempre interpretada a um nível privado e individual, quando na realidade deveria ser uma questão pública e coletiva, uma vez que a experiência materna é condicionada pelo contexto social, e atualmente este é hostil à parentalidade.

Viver a experiência materna como um direito, independentemente de idealizações, o direito de engravidar, um parto com respeito, uma amamentação satisfatória… implica necessariamente uma mudança de modelo socioeconómico. Por isso é tão importante politizar a maternidade. Como diz o movimento feminista, “o pessoal é político”.

A experiência materna é determinada pelo contexto social e económico em que vivemos e é hostil à maternidade e à parentalidade. É assim desde o primeiro momento. Há um olhar infantilizador e patologizante sobre a gravidez e o parto. Somos levadas a acreditar que não sabemos como dar à luz ou amamentar. A culpa e a insegurança acompanham-nos sempre enquanto mães, e isso faz-nos delegá-lo a terceiros, aos profissionais de saúde, por exemplo, aos especialistas… Um caso óbvio é o do parto. Pode-se dizer que a capacidade de decisão das mães ao dar à luz fica na porta de entrada do hospital. É necessária formação focada nas questões de género nos cuidados com a gravidez e parto, entendendo que a mãe é um sujeito ativo, com capacidade de tomar decisões, e não uma pessoa doente.

Só as mulheres engravidam. No seu livro explica o papel atribuído às mulheres ao longo da história como consequência desta realidade. Parece que a maternidade foi uma oportunidade para os homens exercerem dominação sobre as mulheres e discriminá-las negativamente, não? 

Foi como historicamente se usou a capacidade biológica das mulheres para dar à luz, como uma imposição, como um instrumento de controlo dos nossos corpos, como um fardo inescapável. Mesmo assim, uma vez que as mulheres, graças à luta feminista, acabaram com a maternidade enquanto destino, agora o que precisamos fazer é decidir como queremos viver essa experiência.

Li há pouco uma feminista que dizia que a liberdade dos homens se baseia na escravidão das mulheres. Concorda? 

Não deveria ser assim, mas o sistema patriarcal baseia-se no fato de que a dominação masculina sobre as mulheres e as desigualdades de género têm como contrapartida uma série de privilégios para os homens. Para mim, a verdadeira liberdade para homens e mulheres é baseada em alcançar a plena igualdade, e é exatamente isso que o feminismo defende. Uma igualdade que, para ser eficaz e real, deve ser alcançada em termos de género, classe e etnia, pondo fim a todas as formas de exploração e opressão.

No livro fala muito sobre a partilha do trabalho de cuidados. As relações de um menino ou de uma menina com o pai e com a mãe foram sempre consideradas diferentes, não? Devemos romper com estas diferenças? 

Sim. Isso deve-se a uma série de preconceitos sociais, baseados em estereótipos de caráter machista e que fazem os meninos e as meninas socializarem  de modos diferentes. Educar em igualdade implica educar no exemplo, e é tão importante o que fazemos em casa como o que fazemos nas ruas.

O contexto social e económico em que vivemos é hostil à maternidade.
 

Afirma que “é imperativo” o envolvimento do Estado na organização dos cuidados. Como é feito esse envolvimento? De que forma? 

O estado de bem-estar é totalmente insuficiente e as políticas neoliberais reduziram-no ainda mais. Não está pensado para ter em conta as necessidades do cuidado e da parentalidade. 

As mulheres que podem pagar terceirizam o trabalho reprodutivo, em geral, para outras mulheres em situação menos privilegiada. E aquelas que não podem pagar assumem uma carga de trabalho maior. O Estado teria que dedicar mais recursos a tudo que tem a ver com a parentalidade e o cuidado das pessoas dependentes. O repensar dos serviços públicos deve estar vinculado a uma reorganização drástica do mercado de trabalho e à redução da jornada laboral.

“Mamá desobediente” é um ensaio no qual recorre um pouco ao estilo narrativo para se poder explicar a partir da sua experiência pessoal e de outras pessoas. E no livro denuncia a violência obstétrica. Descreve-a amplamente. Há solução? Que pode ser feito, além das medidas administrativas para limitar este tipo de violência? 

Devemos começar por reconhecer que a violência obstétrica existe. E isso não é fácil. Quando falamos sobre isso, os profissionais de saúde, que teriam que ser aliados para a sua erradicação, tendem a ficar à defesa e a rejeitar o conceito.

Mesmo assim, apontar a violência obstétrica não é uma crítica individual a um evento específico, mas sim a práticas generalizadas, cesarianas desnecessárias, episiotomias de rotina, separação sem motivo da mãe e bebé após o nascimento… que têm um impacto negativo na saúde física e emocional das mulheres e bebés. Práticas que, aliás, ocorrem em maior número no setor privado de saúde.

Usa também a experiência pessoal para fazer uma ampla defesa da amamentação. Reivindica a prática da amamentação contra a “cultura do biberão”. Não se discutem muito os benefícios desse tipo de alimentação. Onde identifica as principais dificuldades?

De um modo geral, nos últimos anos, foram feitos avanços na promoção da amamentação. O problema é que existe uma lacuna importante entre o discurso institucional em prol da amamentação e os recursos financeiros destinados a promovê-lo. Depois de dar à luz num hospital, somos informadas dos benefícios da amamentação e acompanhadas, mas assim que chegamos a casa e começam as primeiras dificuldades, nem sempre se encontra bom aconselhamento nos serviços públicos de saúde. Existem poucos recursos e a formação está desatualizada. 

Não se trata de impugnar a maternidade, mas sim aquela que é definida, imposta e restringida pelo patriarcado.

Além disso, a curta licença de maternidade que temos, de apenas 16 semanas, não permite a amamentação exclusiva durante os primeiros seis meses de vida do bebé, conforme recomendado por todas as organizações de saúde. É uma prática que não é apenas benéfica para a saúde do bebé, mas também para a saúde da mãe.

Afirma-se sem qualquer dúvida contra a gestação de substituição [remunerada]. Como evitá-la? Com penalizações?

Julgo ser necessário insistir, e fazer muita pedagogia, que a maternidade não é apenas biológica. A maternidade é também adotiva, de acolhimento dos filhos do nosso parceiro, caso este as tenha tido anteriormente. 

Também deve explicar-se que a maternidade de substituição não é uma técnica de reprodução assistida, mas que implica a comercialização, num contexto de grandes desigualdades sociais, de um processo biológico como é a gravidez, e que tem consequências físicas e emocionais para a mulher grávida e para o bebé. Apesar do que dizem seus defensores, e da existência de experiências formalmente mais respeitosas, a maternidade de substituição abre as portas para múltiplas violações dos direitos de ambos.

A grávida, por contrato, não pode decidir sobre a gravidez e, durante esses nove meses, tem a sua alimentação e medicação controladas. Em alguns país é inclusive internada e isolada do seu ambiente familiar. E, em muitas ocasiões, a mulher não pode ver ou receber qualquer informação sobre o bebé que deu à luz. Por outro lado, o bebé é frequentemente separado da mãe logo após o nascimento e não volta a saber mais nada sobre ela por toda a sua vida.

No livro explica e usa como referências diferentes posições e reflexões de pensadoras feministas sobre a maternidade. “Foi sempre um tópico incómodo para o feminismo”, reconhece, e aponta diferentes linhas de pensamento. Reflexões interessantes que conclui com um desafio: acabar com a instituição materna e libertar a experiência. Isso requer concretização, certo?

Bem, trata-se de diferenciar, como já dizia a ativista feminista e poeta Adrienne Rich, entre a instituição materna imposta pelo patriarcado, geradora de submissão, e a potencial relação das mulheres com a experiência materna. 

Não se trata de impugnar a maternidade, mas aquela que é definida, imposta e restringida pelo patriarcado. Isso implica valorizar e tornar visível a maternidade, embora reconheça que esta não é uma identidade única para as mulheres, e as mulheres que são mães são muito mais coisas.

Uma maternidade feminista é aquela que rompe com os ideais maternos que nos foram impostos, que reivindica a mãe como um sujeito ativo, com capacidade de tomar decisões, e que se reconcilia com seu próprio corpo, empoderando-se na gravidez, parto e amamentação.

Talvez uma das razões mais óbvias para a necessidade de falar sobre a maternidade em termos políticos seja o fato de, como diz, “sobreviver no mercado de trabalho não é fácil se se tem filhos”. O feminismo tem propostas para fazer com que a maternidade não atrapalhe a atividade profissional das mulheres?

Em termos concretos, tornar a vida profissional e a paternidade compatíveis é reduzir a jornada de trabalho sem perder salários, uma exigência que, a esta altura, parece ter sido esquecida pela maioria dos sindicatos. Isso implica partilhar igualitariamente o trabalho de cuidados entre homens e mulheres e organizar a sociedade de maneira a que a parentalidade e o trabalho remunerado não sejam áreas antagónicas.

A esquerda não foi capaz de elaborar um discurso próprio sobre a maternidade e vai a reboque da direita.

Mesmo assim, considerar a maternidade um fardo é justamente um dos limites do discurso da esquerda e do feminismo em relação à experiência materna.

Obviamente, se somos mães somos penalizadas no mercado de trabalho, mas a abordagem para responder a esse problema está errada. E isso tem muito a ver com o fato de a esquerda não ter sido capaz de elaborar um discurso próprio sobre a maternidade e ir a reboque da direita. O problema, na realidade, não é a maternidade, mas o sistema socioeconómico. Não se trata de continuar a adaptar a maternidade ao trabalho remunerado, por exemplo, com licenças de maternidade extremamente curta a serviço dos interesses dos empresários que querem que regressemos ao trabalho após 16 semanas, mas sim de adaptar o mercado de trabalho à maternidade e parentalidade. E com isto não quero julgar uma mãe por querer ou não reintegrar o posto de trabalho às 16 semanas, mas se alguém quiser uma licença mais longa, deveria ter direito a ela.

A Esther Vivas foi sempre militante, ativista ambientalista e anticapitalista. “No capitalismo, não há lugar para se ter filhos”, afirma taxativamente. Muitas feministas dizem que o feminismo questiona o sistema capitalista, mas você constata que “a militância não está pensada para ser compatível com a parentalidade” e que surgiu uma nova geração de mulheres que considera a maternidade como uma chave emancipatória. Que chave é essa?

Graças às feministas dos anos 60 e 70, que reivindicavam o poder de decisão sobre o nosso corpo e a nossa sexualidade, a maternidade deixou de ser uma imposição, mas essa bandeira caiu, e compreensivelmente, num certo discurso antimaternal e anti-reprodutivo, como reação à imposição que o patriarcado fez da experiência materna das mulheres. 

Hoje existe uma nova geração de feministas que cresceram num contexto em que a maternidade é, em grande parte, uma escolha, e isso permite-nos olhar para o fato de se ser mãe com menos preconceitos do que as nossas antecessoras e reivindicar a possibilidade de se poder viver essa experiência à margem dos limites e dos ideais impostos pelo sistema patriarcal e capitalista.

Considera que o novo feminismo desafia o patriarcado e o capitalismo. Afirma-se do “feminismo dos 99%”, popularizado por Nancy Fraser, que “denuncia as perigosas amizades do feminismo com o capitalismo”. E diz que “a luta pela igualdade é inseparável de uma mudança estrutural no modelo económico e nas relações sociais”. Em que se deve basear essa mudança? Quem pode implantá-la?

Se o feminismo deseja alcançar a igualdade para as mulheres como um todo, deve ter uma perspectiva anticapitalista e anti-racista, se não será simplesmente um feminismo para as mulheres brancas da classe média. Este debate, de fato, não é novo.

O feminismo dos anos sessenta e setenta teve essas mesmas discussões, mas num contexto diferente. Os problemas que enfrentamos, a crise ecológica, social, económica, o racismo, o machismo, a LGBTfobia… estão interligados. Isso torna essencial o estabelecimento de alianças entre diferentes movimentos e setores sociais.

Email
Whatsapp
Telegram
Instagram
Facebook
Twitter
TikTok
LinkedIn
Cart Overview