Mãe de verdade

Leda Antunes | O Globo

“Mamãe está muito cansada de tudo isso, afinal, mamãe também é gente”, desabafa a narradora anônima de “Raiva”, romance da premiada autora norueguesa Monica Isakstuen, que chega ao Brasil pela editora Rua de Sabão. A afirmativa pode até parecer óbvia, mas séculos de idealização em torno da maternidade fazem com que ela ecoe na experiência de muitas mulheres que decidem ser mães.

Afinal, sobra pouco espaço para expressar as angústias e os sentimentos mais humanos, quando o ato de ser mãe, para a maioria, ainda se reduz às opções do anjo do lar ou da supermulher, escreve a jornalista catalã Esther Vivas, em outro livro recém-lançado sobre o tema. Em “Mamãe Desobediente” (Timo), publicado originalmente na Espanha em 2019, a autora questiona o modelo de maternidade estabelecido e defende a necessidade de um olhar feminista sobre a maternidade, já que “estão em jogo os direitos das mulheres que são mães”.

Seja na prosa envolvente de Isakstuen ou no ensaio jornalístico e sociológico de Vivas, o que está em xeque são as idealizações de perfeição impostas sobre as mães e como elas geram uma série de opressões e sofrimento às mulheres que decidem, ou não, ter filhos.

— Ao longo da história, o patriarcado impôs às mulheres a maternidade como destino. E também estabeleceu um certo ideal de uma boa mãe, sacrificada, sem vida própria. Se trata de um modelo de maternidade inacessível, indesejável e tóxico — explica Vivas, e continua — É essencial questionar este ideal e, ao contrário, reivindicar a maternidade verdadeira, a maternidade real, com suas luzes e, em particular, suas sombras.

É justamente sobre as sombras que Isakstuen se debruça em “Raiva”, ao explorar, a partir de sua experiência pessoal, as angústias e sentimentos considerados por vezes “vergonhosos” ou “inadequados” para uma “boa mãe”. Ao narrar o cotidiano de uma mulher sobrecarregada com o cuidado dos três filhos pequenos, o romance da norueguesa se destaca pela coragem de escancarar a raiva, o ódio e as frustrações que perpassam a experiência da maternidade.

— Antes de ter filhos, tinha certeza de que me tornaria uma mãe calma e paciente, uma mãe “zen”. Mas a realidade foi um pouco diferente. Tornar-se mãe é conhecer novos aspectos de si mesma, e nem todos os aspectos são tão fáceis de gostar ou aceitar — conta a autora.

Para Isakstuen, a vergonha sentida por muitas mulheres em compartilhar ou deixar transparecer tais aspectos considerados mais desagradáveis sobre a maternidade, como a raiva, tem explicação na história:

— Durante séculos, falamos sobre mulheres “histéricas”. E leva tempo para quebrar a conexão entre essa palavra e mulheres que mostram emoções fortes. Veja que valores atribuímos a palavra mãe: paciência, cuidado, suavidade. Além disso, uma mãe moderna também deve ser profissional, bonita, uma amiga adorável, uma amante notável, uma colega de sucesso. Não é de se admirar que muitas mães se sintam malsucedidas e com raiva — diz.

Em sua sinceridade, a obra da norueguesa acaba por demonstrar que ser mãe pode ser uma experiência extrema em qualquer lugar.

— Se admitirmos que cometemos erros, será mais fácil perdoar a nós mesmas. Vejo minha escrita como um ato de solidariedade: se minha escrita pode tornar a vida mais fácil para outras pessoas, escreverei sobre qualquer coisa que machuque.

Maternidades no plural

As experiências das estrangeiras conversam com o que compartilham as autoras que assinam “Maternidades no plural”, recém-lançado pela Companhia das Letras. Ao reunir o relato de seis mulheres com vivências diversas, o livro funciona como um caleidoscópio e uma celebração das diferentes formas de ser mãe no Brasil.

Os relatos íntimos e sinceros são assinados pela fotógrafa Annie Baracat, que fala sobre adoção e maternidade solo; a comunicadora Deh Bastos, que discute a importância da educação antirracista; a economista Glaucia Batista, que narra sua experiência com a maternidade de crianças atípicas; a cientista Ligia Moreira, que discute maternidade solo e carreira; a artista plástica Marcela Tiboni, que traz a vivência da maternidade lésbica e a educadora Mariana Camardelli, que defende que a palavra “madrasta” não é palavrão.

— Falar sobre essas experiências pessoais é ‘Maternidades no plural’ reúne relatos de seis dar visibilidade à situações comuns e mulheres sobre diferentes formas de ser mãe no sentimentos que nem sempre são legitimados pelos modos dominantes de representações. A desconstrução da maternidade patriarcal, tão opressiva para as mulheres, requer uma profunda transformação estrutural — afirma Glaucia Batista, que em seu texto faz um relato íntimo e sincero sobre sua experiência como mãe de dois meninos atípicos.

A economista comemora a publicação do livro sobre o tema, reunindo diversas experiências de maternidade.

— O livro ratifica a importância de narrativas diversas, carregadas de sentimentos humanos e genuínos. Na individualidade das nossas experiências, trazemos pautas coletivas que permeiam o universo das mulheres. Para o leitor, a identificação pode bater como um despertar para a luta por mudanças sociais e políticas.

Vivas, que trata de temas como violência obstétrica, aleitamento materno e depressão pós-parto em “Mamãe desobediente”, ressalta as semelhanças da maternidade vivida na Espanha com as trazidas pelas autoras brasileiras, mas faz uma ponderação:

— Devemos olhar para a maternidade de uma perspectiva interseccional e ter em mente que a maternidade não é atravessada apenas por desigualdades de gênero, mas também por desigualdades de classe e raça. A violência contra as mães é exercida em maior medida contra as mulheres pobres e racializadas — afirma.

A autora também lembra que a maternidade, afinal, não pode mais ser tratada como uma questão que diz respeito apenas às mulheres:

— A maternidade é uma questão política, coletiva, que deveria implicar a todos, pois
estamos falando de cuidar daqueles que vão ser os adultos de amanhã.

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